Por Alex Lima
Antes de mais nada, não se assustem. Essa não é uma carta apocalíptica. Apesar da clara alusão aos livros de George R. R. Martin (e à série mundialmente conhecida da HBO, Game of Thrones) a intenção aqui é diferente. Para quem não conhece a série, a família Stark é uma das protagonistas, os senhores feudais que habitavam o Norte de Westeros e nativos de um clima inospitamente gelado durante a maior parte do ano. Há uma frase icônica que acompanha a cultura da família: Winter is Coming (o inverno está chegando). É uma alusão de que, de tempos em tempos, um inverno extremamente rigoroso poderia devastar a vida dos povoados do norte. Ao longo dos livros/série de TV, o leitor aprende que o aviso é proveniente de uma profecia mais apocalíptica onde o frio é um inimigo secundário à trama (evitando aqui dar mais detalhes para não estragar o romance para quem não conhece). Trazendo para nossa realidade de mercado, diversos analistas trazem uma mensagem há algum tempo que poucos acreditam que irá se materializar um dia: inflation is coming. E com isso, uma alta de juros nos EUA pode provocar um outro paradigma no mercado financeiro global.
Retirada da liquidez: o inverno chegou?
Esse tipo de mensagem, de que um dia algo profetizado irá acontecer, traz diversos paralelos com a realidade do mercado global hoje. Há mais de 10 anos, o juro básico do banco central americano está em patamares mínimos. Além disso, para poder propulsionar sua economia, o balanço do Federal Reserve como proporção do PIB americano evoluiu nos últimos 12 anos de 6% do PIB para próximo de 40%. Essa rubrica é o famigerado Quantitative Easing, onde o banco central compra títulos do governo dos bancos para injetar liquidez no sistema bancário, com a expectativa de baixar os juros longos se estimular a economia.
O balanço do banco central, assim por dizer, está relacionado ao tamanho das compras dos títulos públicos americanos, ou o tamanho do programa de quantitative easing. Por diferentes métricas, parece que o mercado de capitais e a economia americana dependem da presença intensa do banco central na economia. Há correlações fortes do tamanho do balanço do banco central com o nível de produtividade e a exuberância da bolsa americana – hoje, é bem estabelecido que quanto maior o nível de liquidez nos mercados, maior a propensão de tomar risco em ativos de risco.

Balanços do Fed – proporção do PIB e vs. S&P 500 (Fonte: Bloomberg, Lifetime Asset Management)
Durante a pandemia, esse tipo de instrumento mais que dobrou. O resto da estória já conhecemos: rupturas em cadeia de valores globais, transferência de renda via estímulo fiscal e juros baixos: um ano depois, o mundo tem um surto de inflação. Veja abaixo como a inflação americana descola da sua média histórica. Quem diria que voltaríamos a ver inflação em dólar acima de 6%.

Inflação americana A/A (Fonte: Bloomberg, Lifetime Asset Management)
Durante o ano de 2021, a narrativa do Federal Reserve foi de que a alta na inflação americana era transitória. Sempre insisti no seguinte ponto: todo banco central terá esse discurso, ou, de fato comunicará uma ação. A priori, nenhum banco central admite que perdeu a guerra contra a inflação nos primeiros 90 minutos de jogo – a reputação com relação à sua eficiência é o maior ativo desse tipo de instituição. Com uma postura crível, bancos centrais conseguem ancorar expectativas de inflação, que são tão importantes quanto a inflação de preços. Portanto, como default, é raríssimo uma instituição comentar nos canais formais que “está perdendo a batalha com a inflação”. A resposta é sempre binária: ou é transitória (com suas diferentes variáveis — convergência, reversão etc.) ou, de fato, a instituição toma providências. O Fed fez sua aposta, e sim, colocou-se no papel de correr atrás do prejuízo. Como consequência, fazia tempo que os EUA não viam inflação nesse patamar, gerando empobrecimento real na população e complicando a gestão Biden.
Como Treinar seu Dragão: consequências da inflação americana
Recentemente, a liderança do Fed fez um aceno ao mercado sinalizando uma redução mais agressiva das compras de títulos (ritmo do tapering). A volta do dragão americano da inflação traz diversas questões importantes que devem ser ponderadas. Algumas perguntas que todo gestor de recursos deveria fazer para 2022:
– Com um patamar de juros mais alto, qual será o impacto nas empresas de tecnologia nos EUA? Um bom paralelo é o que aconteceu com as empresas de tecnologia no Brasil nesse ano após a alta dos juros curtos. Historicamente, juros altos é um fator negativo para empresas de tecnologia. Primeiro, pois são empresas muitas vezes alavancadas. Segundo, como grande parte do valuation fica na perpetuidade, o valor é muito sensível aos juros de longo prazo. Como consequência, podemos ver abaixo, há uma relação negativa do índice das ações de tecnologia (Nasdaq) vis a vis os juros americanos de 10 anos.

Juros americanos de 10 anos vs. Ações de tecnologia (Fonte: Bloomberg, Lifetime Asset Management)
– O que acontece com moedas e renda variável de países emergentes? A expectativa mais racional é que haja um interesse maior na rentabilidade da renda fixa em dólares vis a vis moedas de mercado emergentes (o próprio real, entre outros). Poderemos ver um novo patamar do dólar real? A resposta também não é muito alentadora. Historicamente, índices de ações de mercados emergentes reagem um pouco mal quando o juro americano sobe. Investidores institucionais pensam em termo de risco/retorno, então pequenas mudanças nas taxas de juros de países desenvolvidos geralmente afetam muito o apetite de grande parte do portfólio. Geralmente, o financiamento dessas novas posições em juros americanos mais altos vem de alocações mais arriscadas, como de renda variável de países emergentes. Abaixo, a relação entre o aumento do nível da Treasury de 10 anos e do Ibovespa é claramente negativa.

Juros americanos de 10 anos e Ibovespa (Fonte: Bloomberg, Lifetime Asset Management)
– O que acontecerá com o crescimento americano, que há uma década trabalha com juros abaixo de 3% ao ano? Quão sensíveis serão os setores imobiliários e empresas alavancadas com essa mudança de patamar de juros? Qual o impacto disso globalmente?

Produtividade americana: beta de alavancagem monetária após 2018 (Fonte: Bloomberg, Lifetime Asset Management)
Conclusões
2022 já será um ano de normalização do juro americano para patamares que não vemos há mais de 10 anos. Para países como o nosso, que estão com aspectos macros desarranjados, poderá ser um desafio, principalmente do ponto de vista de que juros maiores nos EUA podem provocar fuga de capital do Brasil.
Por outro lado, os ativos brasileiros estão extremamente descontados. Qualquer perspectiva de rearranjo institucional (via reformas ou eleição) poderia atenuar esse movimento de maneira importante. Como vemos pouca probabilidade do atual governo engatar qualquer reforma nos próximos 12 meses, a eleição fica como única possibilidade de surpresa positiva (não sendo o atual cenário).
Dado a perspectiva de aumento de juros nos EUA, será imperativo monitorar o diferencial de juros real entre as duas economias. Atualmente, o Brasil tem um juro real de 1 ano de cerca de 6%, enquanto os EUA têm um juro real negativo de -3,5%. Para nós parece um patamar que justifica manter recursos aplicados na renda fixa no Brasil. Entretanto, uma mudança brusca nesse spread poderá reverter o ponto de equilíbrio. Uma mudança de 100 bps nos EUA é muito mais relevante para portfólios globais do que uma mudança de 100 bps no juro real do Brasil (ajustando por risco de crédito e volatilidade). Portanto, se a inflação americana correr para um lado (subir) e a brasileira para outro (cair), muito provavelmente veremos uma mudança no patamar do dólar real para cima do atual patamar (R$5,69 no momento que escrevemos essa carta).
Numa hipótese onde a inflação americana acelere ainda mais que o atual ritmo, a tese de diversificação em ativos nos EUA fica também um pouco ameaçada. Apesar da comunicação do Fed ser bem calibrada para não assustar os mercados e calibrar a política monetária em câmera lenta, a liderança da instituição já reconheceu a inflação como “não transitória” e reconhece que o término das compras de títulos pode acabar no primeiro trimestre de 2022. Essa é a senha para o mercado reconhecer que pode haver um aumento de juros ainda no primeiro trimestre de 2022. Caso a inflação surpreenda, o mercado de ações pode precificar uma alta de juros mais brusca e reagir negativamente. Empresas de tecnologia, que estão com seus valuations em recordes históricos, certamente sofrerão mais – grande parte do valor dessas empresas está na perpetuidade e, portanto, um juro mais alto de um impacto desproporcional no preço. Assim como empresas brasileiras de growth sofreram neste ano com o aumento dos juros, o mesmo poderia acontecer nos EUA.
A pergunta que resta e é mais difícil de articular um racional é a seguinte: o que acontece com a bolsa brasileira, com valuation barato, caso haja uma correção no mercado dos EUA no ano que vem? Seria um case mais forte caso estivéssemos em uma crise fiscal, política, inflacionária e de crescimento. Fica claro que teremos volatilidade e há forças internacionais (ajuste de juros nos EUA) e locais (eleições Brasil). Portanto, continuamos com a visão de sermos táticos em bolsa e overweight em renda fixa (pré e pós) atualmente. Após dois anos conturbados de pandemia, aproveitar os prêmios atuais de renda fixa nos parece mais assimétrico, ainda mais acoplando a visão de baixa atividade e menor inflação no Brasil no ano que vem.
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