História de Valor #004: origem e evolução do whisky
Produzido a partir da destilação de grãos e envelhecido em barris de madeira, o whisky é uma bebida rica e complexa que pode apresentar diferentes características a depender dos processos utilizados na sua fabricação. Atualmente, o whisky é consumido em todas as partes do mundo, e se destaca no segmento de bebidas de luxo, com um número crescente de apreciadores que desejam explorar os aromas e sabores desse destilado tão nobre.
Contudo, a história do whisky é cheia de altos e baixos, e a bebida nem sempre foi associada à complexidade, ao requinte e ao luxo como acontece atualmente. Nesta matéria, falaremos sobre a origem e a evolução do whisky, desde as regiões da Escócia e da Irlanda no século XV até sua disseminação a nível global.
Como é feito o whisky?
Explicando brevemente, whisky é produzido a partir de grãos, sendo o principal deles a cevada, matéria prima dos whiskies sinlge malt. Nesse caso, o processo começa pela maltagem da cevada, ou seja, a germinação dos grãos, que aumenta a concentração de amido na cevada, que posteriormente será convertido em açúcar, e sua secagem.
Essa cevada maltada é moída e cozida em tonéis de água quente, sendo a mistura, conhecida como mosto, acrescida de levedura para dar início ao processo de fermentação, que produz o álcool. Concluída essa etapa, tem início a destilação, que consiste na fervura do mosto dentro dos alambiques, que separa o álcool da água e produz o whisky pronto para o corte.
Depois disso, o whisky é depositado em barris de madeira (na maioria das vezes, barris de carvalho) para envelhecer e adquirir suas características de valor, respeitando a legislação vigente no país em questão no que diz respeito ao tempo de barril e ao processo posterior de envase.
Jabir ibn Hayyan: o pai da destilação
O desenvolvimento do processo de destilação, imprescindível para a produção do whisky, é atribuído ao alquimista Jabir ibn Hayyan (721-815), que teria criado o primeiro alambique da história por volta da virada do século VIII para o século IX. O inventor é considerado um dos maiores polímatas do mundo muçulmano medieval, sendo creditado por diversas invenções e tratados, principalmente relacionados à química.
Não demorou muito para que a invenção de Jabir chegasse à Europa, dando origem a uma série de bebidas destiladas, dentre as quais o whisky, muitas vezes visto pelos clérigos da época como substância medicinal.
Uma pergunta sem resposta: Irlanda ou Escócia?
A palavra “whisky” deriva do escocês gaélico “uisge beatha”, que significa “água da vida”, e o documento histórico mais antigo a mencionar a bebida foi produzido pelo fisco escocês em 1494, no qual o rei James IV da Escócia (1473-1513) encomendava “oito porções de malte para Friar John Cor, com o qual fará Aqua Vitae“. Olhando apenas essas evidências, parece claro que a bebida surgiu em terras escocesas. Entretanto, não é tão simples assim dizer.
Outras evidências anteriores ao documento de 1494 indicam que monges irlandeses já produziam a “água da vida” em seus mosteiros, algumas podendo datar do século XIV, enquanto outros indícios apontam para a produção na região das Highlands, terras montanhosas situadas na região norte da Escócia. Dessa forma, tudo o que podemos afirmar é que a produção de whisky já era relevante ao longo do século XV tanto na Escócia quanto na Irlanda, e ambos os países conservam uma forte tradição na produção do destilado.
Independente da origem, o whisky se disseminaria em ambas as regiões ao longo dos séculos XVI e XVII, mas sem grandes evoluções tecnológicas e sempre em escala artesanal. O primeiro registro de uma destilaria que produzia a bebida em escala comercial data de 1690, mencionando uma certa destilaria Ferintosh, sobre a qual há poucas informações. Foi no mesmo século, em 1644, que foram introduzidos os primeiros impostos sobre a bebida, o que fomentou a produção ilegal.
Século XVIII: a era das destilarias ilegais
Ao longo dos anos 1700, a produção de whisky crescia na Escócia e na Irlanda, com destilarias ainda relativamente pequenas, mas que já produziam visando o lucro. Contudo, as rígidas leis escocesas e a cobrança de impostos resultaram na proliferação das destilarias ilegais, que, segundo estimativas, respondiam por metade da produção em toda a Escócia em 1820.
O contrabando de whisky destilado ilegalmente e as tentativas das autoridades de coibirem a prática são descritas em um artigo da Scotch Whisky Association como “um jogo de gato e rato”, no qual os produtores irregulares e os contrabandistas sempre encontravam novas formas de burlar a legislação.
A questão fiscal pressionava as grandes destilarias legalizadas a utilizarem produtos de baixa qualidade, com pouca cevada maltada e muitos cereais não maltados mais baratos, além de apressarem o processo de produção do whisky, de forma a reduzir os custos para conseguir pagar as elevadas taxas cobradas pelo fisco, resultando em um produto de péssima qualidade que não agradava os consumidores.
Em contrapartida, o whisky produzido pelas destilarias ilegais, majoritariamente situadas na região norte da Escócia, utilizava muito mais malte em sua composição e adotavam processos mais sofisticados, oferecendo um produto de qualidade muito superior, uma vez que não era preciso pagar as pesadas taxas às quais estavam sujeitos seus concorrentes que seguiam a lei. Por se tratar de um mercado ilegal, era comum que a violência fosse empregada pelos produtores e distribuidores de whisky ilícito para assegurar seus interesses, demandando uma resposta das autoridades.
Vale mencionar também que a produção de whisky nos Estados Unidos teve origem no final do século XVIII, contribuindo para a disseminação da bebida no continente americano e criando novos estilos, como o bourbon e o rye whiskey.
Excise Act de 1823: uma revolução na indústria do whisky
Em 1823, foi publicado um Excise Act (“ato fiscal”, em tradução livre) que estabeleceria as bases para a indústria do whisky na Escócia e na Irlanda, detalhando ao longo de 52 páginas as regulamentações às quais estariam sujeitos os produtores do destilado, tratando sobre como as destilarias deveriam ser construídas e os equipamentos que deveriam ser utilizados na produção e estabelecendo uma taxa de 10 libras para o licenciamento de alambiques, reduzindo também as possibilidades de evasão fiscal.
Com a nova regulamentação, a produção ilegal nas regiões mais remotas foi progressivamente perdendo espaço para a produção regulamentada, que passava a ser economicamente viável, uma vez que o ato acabou com as diferentes zonas de taxação ao longo da Escócia e implementou uma taxação uniforme.
Os produtores que descumprissem as normas estabelecidas pelo ato estariam sujeitos a duras penas, e a fiscalização firme das autoridades fez com que o mercado antes caótico voltasse a ficar sob controle e pudesse evoluir de acordo com a lei e aproveitando as novas tecnologias que tomavam o mundo de assalto ao longo do século XIX.
Foi a partir desse momento que a maioria das grandes destilarias que conhecemos atualmente se consolidaram, como é o caso das famosas Macallan, Bowmore, Highland Park, dentre muitas outras.
Blended whisky e a popularização da bebida
Até meados do século XIX, não existia o conceito de “blended whisky”, ou seja, uma mistura de diferentes whiskies, tanto single malts quanto aqueles produzidos a partir de grãos não maltados, que é a categoria dominante no mercado atualmente. Os rótulos mais vendidos nos dias atuais, como as linhas Johnny Walker (com exceção do Green Label), Chivas, Ballantine’s e Jameson são todos blended whiskies, o que reforça o sucesso comercia da categoria.
Os blended whiskies surgem também na Escócia, e sua invenção é frequentemente atribuída a Andrew Usher, empresário do ramo de bebidas que começou a realizar misturas de single malt, ou seja, whiskies feitos a partir de 100% de cevada maltada, posteriormente adicionando também whiskies produzidos com outros grãos, como milho, trigo e centeio, aos seus “blends”.
Andrew e seu irmão, John Usher, eram os proprietários da destilaria Edinburgh, e obtiveram sucesso com o Usher’s Old Vatted Glenlivet, um blended scotch whisky que pode ter sido inicialmente produzido a partir de uma mistura de single malts, mas que passou a ser produzido com a composição que se tornaria padrão da indústria posteriormente: entre 1/3 e 1/4 de whisky de cevada maltada e o restante da mistura sendo composta por whiskies de grãos.
A mistura tornava o produto final mais suave e por vezes mais doce, características advindas principalmente do milho e do centeio, além de reduzir os custos de produção, uma vez que esses grãos são muito mais baratos do que a cevada maltada, considerada uma matéria prima mais nobre.
Aliando menores custos e um sabor menos marcante, essa categoria conquistou paladares ao redor do mundo e permitiu a disseminação a nível internacional da “água da vida”. Essa expansão levou ao surgimento de novos estilos e técnicas de produção, inserindo nações como Japão, Canadá, Índia e até mesmo o Brasil, embora em menor escala, no mercado do whisky.
A pureza do single malt
Apesar do sucesso comercial dos blended whiskies, os single malts conservaram seu espaço entre apreciadores, sendo vendidos durante muitas décadas como produto de nicho, devido ao custo mais elevado de produção e ao sabor mais marcante e potente dos whiskies produzidos exclusivamente à base de cevada maltada.
No mercado atual, destilarias consagradas produzem single malts cobiçados por apreciadores de todos os cantos do mundo, sendo frequentemente associados à sofisticação e potência, como é o caso dos emblemáticos Macallan, considerados os “Rolls-Royces dos whiskies”.
Desde os anos 1990, a procura por essa categoria de whisky vem crescendo, e a internet tem contribuído para o desenvolvimento da cultura do whisky, aumentando a presença dos single malts em mercados nos quais estes não eram tão demandados até algumas décadas atrás, como é o caso do Brasil e de outros países da América Latina. Isso tudo reforça a perspectiva positiva para o mercado desse destilado tão complexo e apreciado.